segunda-feira, 31 de março de 2014

É BOM SABER


A noite era amarela e húmida. 
Chovia quando me deste a mão e o pequeno cão molhado olhou para nós como se de há muito nos conhecesse. Tinha acabado de ler João Tordo, e trazia na memória algumas das suas palavras. Avançámos pela noite como se ela fosse um túnel. Apesar da morrinha, fazia calor. Tiraste os sapatos, e sorriste sem dizer nada, mas foi como se tivesses dito alguma coisa. 
O amor sabe ler, eu sinto-o, eu sei-o, eu semeio palavras na sua boca. Sou por vezes a sua voz e o seu poema. 
Procurámos abrigo da chuva no toldo de uma sapataria. Gostaria de ter tirado uma fotografia de longe aos teus pés descalços frente a uma montra exibindo sapatos italianos de requintadíssimo fabrico. Mas guardei essa imagem na memória.
O filme da vida, da nossa vida, das nossas vidas, de quem quer que seja, também é por vezes realizado com imagens que não existem, que nunca existiram, ou apenas existiram porque as captou a nossa imaginação. Mas que constroem o real. Porque o real, mesmo existindo apenas fora de nós, tem de ser construído em nós. E então, justamente, seremos. Mesmo quando não somos nem sabemos, e nem sabemos que não sabemos.
E é bom saber disso.

Joaquim Pessoa

GOSTO TANTO...


Gosto tanto quando tu dizes que me amas

Herda o dia dos sonhos poder profundo 
E a alma inquieta que vagueava pelas tristes horas de antes de ti
Repousa agora na paz de um persistente pensamento que só sabe dizer o teu nome

Às vezes
Desperto na noite por força da saudade
E vou de ti alimentar-me pelas palavras
Tantas
Todas elas a falarem de amor

Gosto tanto quando me descubro em teu pensamento

E sabes?
Eu acho que já não consigo partir de aqui

Gosto tanto quando tu dizes que me amas

Se eu vivo afinal todos os dias...
Amando-te

Sem que nem por um só segundo...
Eu queira deixar de pensar em ti

Francisco Caeiro

domingo, 30 de março de 2014



Deito fora as imagens. 
Sem ti, para que me servem 
as imagens? 

Preciso habituar-me 
a substituir-te 
pelo vento, 
que está em qualquer parte 
e cuja direcção 
é igualmente passageira 
e verídica. 

Preciso habituar-me ao eco dos teus passos 
numa casa deserta, 
ao trémulo vigor de todos os teus gestos 
invisíveis, 
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve 
a não ser eu. 

Serei feliz sem as imagens. 
As imagens não dão 
felicidade a ninguém. 

Era mais difícil perder-te, 
e, no entanto, perdi-te. 

Era mais difícil inventar-te, 
e eu te inventei. 

Posso passar sem as imagens 
assim como posso 
passar sem ti. 

E hei-de ser feliz ainda que 
isso não seja ser feliz. 

Raúl de Carvalho

quarta-feira, 26 de março de 2014


(...)
Se penso que te deixo
já te quero

Se penso que recuso
já te anseio

Se penso que te odeio
já te espero

e torno a oferecer-te
o que receio

Se penso que me calo
já te grito

Se penso que me escondo
já me ofereço

Se penso que não sinto
é porque minto

Se pensas que me olhas
já estremeço.

Maria Teresa Horta

Há Noites



Há noites que são feitas dos meus braços
e um silêncio comum às violetas
e há sete luas que são sete traços
de sete noites que nunca foram feitas.

Há noites que levamos à cintura
como um cinto de grandes borboletas.
E um risco a sangue na nossa carne escura
duma espada à bainha de um cometa.

Há noites que nos deixam para trás
enrolados no nosso desencanto
e cisnes brancos que só são iguais
à mais longínqua onda de seu canto.

Há noites que nos levam para onde
o fantasma de nós fica mais perto:
e é sempre a nossa voz que nos responde
e só o nosso nome estava certo.


Natália Correia

sábado, 22 de março de 2014



Há sem dúvida quem ame o infinito, 

Há sem dúvida quem deseje o impossível, 

Há sem dúvida quem não queira nada — 

Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: 

Porque eu amo infinitamente o finito, 

Porque eu desejo impossivelmente o possível, 

Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, 

Ou até se não puder ser... 


Álvaro de Campos


o tempo não tem todo o mesmo peso. há um tempo que abre feridas e outro que as cicatriza. a impaciência é uma energia inútil e os heróis são personagens de outro palco. já quis acarear o tempo. agora só quero ir ao lado dele. 

nutro-me de utopias. desabo debaixo de grafias líquidas. concedo-me o destino das algas. e devolvo-me às marés. de peito aberto. para ser só coração. vibrante e voraz. vocação de vaga que explode o beijo na areia. 

mas há-de vir o inverno. o frio na pele. o aperto no coração. a gestação dos diálogos. quentes e doces. aveludada teia que retorna ao pensamento quando os dias quietos se retocam de nostalgia. sei então que em algum momento e lugar voaremos em movimento de asas sincronizado. teremos então a idade do ouro. 

Maria José Quintela

quinta-feira, 20 de março de 2014

Génese



Todo o poema começa de manhã, com o sol. Mesmo 
que o sol não esteja à vista (isto é, céu de chuva) 
o poema é o que explica tudo, o que dá luz 
à terra, ao céu, e com nuvens à mistura- a luz incomoda, 
quando excessiva. Depois, o poema sobe 
com as névoas que o dia arrasta; mete-se pelas copas das 
árvores, canta com os pássaros, e corre com os ribeiros 
que vêm não se sabe de onde e vão para onde 
não se sabe. O poema conta como tudo é feito: 
menos ele próprio, que começa por um acaso cinzento, 
como esta manhã, e acaba também por acaso, 
com o sol a querer romper. 

Nuno Júdice

Sinto-te a escorrer por entre os dedos...

domingo, 16 de março de 2014

É preciso não esquecer nada



É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.

É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.

O que é preciso esquecer é o dia carregado de actos,
a ideia de recompensa e de glória.

O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos connosco, pois o resto não nos pertence.

Cecília Meireles

segunda-feira, 10 de março de 2014

AUSÊNCIA


"Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma; mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais - um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se as tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória; e a
Realidade aproxima-me de ti, agora que
Os dias correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refracção de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói."


Nuno Júdice

sábado, 8 de março de 2014

Vou-me embora de mim.



Atreve-te a julgar.
Julga os outros julgando-te a ti mesmo.
A natureza das coisas é a tua natureza.
Respira-te, despe-te,
faz amor com as tuas convicções,
não te limites a sorrir
quando não sabes mais o que dizer.
Os teus dentes
estão lavados, as tuas mãos são amáveis
mas falta-te
decisão nos passos e firmeza nos gestos.
Procura-te. Procura encontrar-te antes que
te agarre a voracidade do tempo.
Faz as coisas com paixão.
Uma paixão irrequieta que não te dê descanso
e te faça doer a respiração.
Aspira o ar, bebe-o com força, é teu,
nem um cêntimo pagarás por ele.
Quanto deves é à vida, o que deves é a ti mesmo.
Canta.
Canta a água e a montanha e o pescoço do rio,
e o beijo que deste e o beijo que darás, canta
o trabalho doce da abelha e a paciência
com que crescem as árvores,
canta cada momento que partilhas com amigos,
e cada amigo
como um astro que desponta
no firmamento breve do teu corpo.
E canta o amor. E canta tudo o que tiveres razão para cantar.
E o que não souberes e o que não entenderes, canta.
Não fujas da alegria.
A própria dor ajuda-te a medir
a felicidade. Carrega nos teus ombros os séculos passados
e os séculos vindouros,
muito do pó que sacodes já foi vida,
talvez beleza, orgulho, pedaços de prazer.
A estrela que contemplas talvez já não exista, quem sabe,
o que te ajudou a ser vida de quantas vidas precisou.
Canta!
Se sentires medo, canta.
Mas se em ti não couber a alegria, não pares de cantar.
Canta. Canta. Canta. Canta. Canta.
Constrói o teu amor, vive o teu amor,
ama o teu amor. De tudo o que as pessoas querem,
o que mais querem é o amor.
Sem ele, nada nunca foi igual, nada é igual,
nada será igual alguma vez.
Canta. Enquanto esperas, canta.
Canta quando não quiseres esperar.
Canta se não encontrares mais esperança.
E canta quando a esperança te encontrar.
Canta porque te apetece cantar e
porque gostas de cantar e
porque sentes que é preciso cantar.
E canta quando já não for preciso.
Canta porque és livre.
E canta se te falta a liberdade.

Joaquim Pessoa

Há gente que sem o saber
torna os nossos dias mais felizes
gente que colora de matizes
os olhos quando o céu chora

Há gente que gravita
e sem nos tocar
deixa-nos a pensar
quantas coisas boas
temos para nos alegrar

Há gente que faz eco dentro da gente
e transforma de repente
um dia sombrio num dia de verão.

São Reis

A sensação que tens 
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.

Albano Martins
"Não sei quantas almas tenho. 
Cada momento mudei. 
Continuamente me estranho. 
Nunca me vi nem achei. 
De tanto ser, só tenho alma. 
Quem tem alma não tem calma. 
Quem vê é só o que vê, 
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo, 
Torno-me eles e não eu. 
Cada meu sonho ou desejo 
É do que nasce e não meu. 
Sou minha própria paisagem; 
Assisto à minha passagem, 
Diverso, móbil e só, 
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo 
Como páginas, meu ser. 
O que segue não prevendo, 
O que passou a esquecer. 
Noto à margem do que li 
O que julguei que senti. 
Releio e digo: "Fui eu?" 
Deus sabe, porque o escreveu."

Fernando Pessoa