segunda-feira, 31 de março de 2014

É BOM SABER


A noite era amarela e húmida. 
Chovia quando me deste a mão e o pequeno cão molhado olhou para nós como se de há muito nos conhecesse. Tinha acabado de ler João Tordo, e trazia na memória algumas das suas palavras. Avançámos pela noite como se ela fosse um túnel. Apesar da morrinha, fazia calor. Tiraste os sapatos, e sorriste sem dizer nada, mas foi como se tivesses dito alguma coisa. 
O amor sabe ler, eu sinto-o, eu sei-o, eu semeio palavras na sua boca. Sou por vezes a sua voz e o seu poema. 
Procurámos abrigo da chuva no toldo de uma sapataria. Gostaria de ter tirado uma fotografia de longe aos teus pés descalços frente a uma montra exibindo sapatos italianos de requintadíssimo fabrico. Mas guardei essa imagem na memória.
O filme da vida, da nossa vida, das nossas vidas, de quem quer que seja, também é por vezes realizado com imagens que não existem, que nunca existiram, ou apenas existiram porque as captou a nossa imaginação. Mas que constroem o real. Porque o real, mesmo existindo apenas fora de nós, tem de ser construído em nós. E então, justamente, seremos. Mesmo quando não somos nem sabemos, e nem sabemos que não sabemos.
E é bom saber disso.

Joaquim Pessoa

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